Por Aline Mourão
Farmacêutica
Mestre em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal de Ouro Preto
Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
A polêmica em torno do uso da cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, me fez pensar sobre o processo de escolha de medicamentos e sobre a importância da sintonia, entre paciente e profissionais de saúde, na tomada de decisão.
Em matemática 2 + 2 = 4, mas quando se trata de "saúde" o resultado nem sempre é esse. Pode ser um número igual, maior ou até mesmo menor que quatro. Ou seja, o resultado obtido por um paciente após alguma intervenção, por exemplo, uso de um medicamento, pode ser o esperado, mas também o paciente pode se manter no mesmo estado ou até piorar.
E para complicar mais um pouco, em "saudática", 2 + 2 pode ser 1, 4 e 7 ao mesmo tempo. Parece loucura, mas é o que acontece na prática. Se a pessoa usa um medicamento e o problema é resolvido, ótimo. Mas se o problema persiste (medicamento inefetivo) e/ou se surge um novo problema (medicamento inseguro), alguma decisão deve ser tomada a fim de encontrar uma solução.
Quando o médico prescreve um tratamento medicamentoso, não há certeza do que vai acontecer: melhora, piora ou nenhum resultado. Apenas após o uso do medicamento saberemos o resultado. E aí surge a pergunta: Como lidar com essa incerteza? Se médico e paciente tomarem decisões a partir do pensamento científico, eles aceitam que não há garantia do sucesso do tratamento (princípio da incerteza) e sabem que as evidências (provas) científicas trazem apenas probabilidade de desfechos (resultados).
A probabilidade é a melhor forma para lidar com a incerteza do resultado de um tratamento medicamentoso. Quando o raciocínio científico é utilizado, médico e paciente reconhecem a existência da incerteza inerente ao resultado do tratamento e que a probabilidade, apresentada nas pesquisas científicas, dá a direção do caminho mais provável que pode dar certo.
"Sobre o uso da hidroxicloroquina e ivermectina no tratamento da COVID-19, não há evidências científicas, ou seja, não há pesquisas que que mostrem que esses medicamentos funcionem em seres humanos. Temos pesquisas que mostram que eles funcionam em laboratório, mas não em humanos. E funcionar em laboratório não quer dizer que funciona quando uma pessoa toma o remédio".
Não há sim ou não, certo ou errado. O que temos é se existe maior ou menor probabilidade de um desfecho x ou y acontecer. Por exemplo, quando uma pessoa usa dipirona para tratar cefaleia (dor de cabeça), esperamos que a dor vai passar, ou seja, a probabilidade do medicamento funcionar é alta. Se a dor continuar, a dose poderá ser aumentada (se a dose máxima ainda não tiver sendo utilizada) ou um novo medicamento ou uma nova intervenção poderá ser prescrita, até que o problema do paciente seja resolvido. É assim que o princípio da incerteza se apresenta na vida real.
Mas sabemos que a tomada de decisão não se limita à consideração da incerteza do tratamento, o processo de escolha de um medicamento também deve se basear nas características clínicas do paciente e em suas necessidades: valores, desejos, preferências, medos, preocupações e contexto de vida. No processo de cuidado, todos os profissionais de saúde devem considerar os três pilares clássicos da Medicina Baseada em Evidências, conforme apresentados por David Sackett, em 1996: uso da melhor evidência disponível, o julgamento clínico e o desejo do paciente. O desejo do paciente não pode ser desconsiderado, ele faz parte do processo e é fundamental para o sucesso do tratamento.
Sobre o uso da hidroxicloroquina e ivermectina no tratamento da COVID-19, não há evidências científicas, ou seja, não há pesquisas que que mostrem que esses medicamentos funcionem em seres humanos. Temos pesquisas que mostram que eles funcionam em laboratório, mas não em humanos. E funcionar em laboratório não quer dizer que funciona quando uma pessoa toma o remédio. Por exemplo, sabemos que água e sabão elimina o vírus, mas se colocarmos água e sabão em uma cápsula e tomarmos, não vai funcionar, não vai eliminar o vírus que causa a COVID-19. Dessa forma, usando o princípio da incerteza, a melhor decisão é “não usar hidroxicloroquina e ivermectina para prevenir ou tratar COVID-19”.
Mas aí, me deparei com pessoas que mesmo cientes dos resultados negativos das pesquisas, desejam usar esses medicamentos. Acredito que a melhor saída é educar a população. Profissionais de saúde e pacientes conversando sobre as probabilidades de resultados positivos e negativos e decidindo o caminho a ser trilhado.
Em alguns momentos é difícil equilibrar os três pilares da medicina baseada em evidências. Qual o peso de cada pilar na tomada de decisão? Caso a caso, em cada consulta, colocamos tudo na balança e vamos escolhendo, juntos, o caminho a seguir.
Para finalizar, gostaria de deixar claro que não tenho conflitos de interesse político e não estou incentivando o uso da hidroxicloroquina e da ivermectina na COVID-19, pelo contrário, sou farmacêutica, ensino e utilizo o raciocínio científico no meu dia-a-dia profissional e sou contra o uso desses medicamentos, diante das evidências atuais.
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